quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Lei das cotas raciais e sociais


Jacqueline Costa
 
Ao que tudo indica, a presidente Dilma Rousseff sancionará a lei proposta pela Deputada Federal Eunice Lobão (PSD/MA), que pretende criar, nas universidades e institutos técnicos federais do país, cotas raciais e sociais para 50% das vagas hoje existentes. Vale lembrar que o STF já declarou a constitucionalidade das cotas raciais, quando apreciou o tema, por mais absurdo que isso seja.

Essa é mais uma proposta de lei, que afronta a Constituição Federal. Para disfarçar essa afronta, utiliza-se da justificativa de que se trata de uma demanda social e que é um tipo de discriminação positiva. Defendem que a adoção das cotas raciais e sociais é uma medida de justiça social. Ora, qualquer que seja o tipo de discriminação, que se imponha nesse campo, é negativa e atentatória ao princípio da igualdade, cláusula pétrea da nossa Constituição. O que deve ser concedido às pessoas é o direito de elas concorrem em pé de igualdade e não criar condições que favoreçam determinados grupos.

O papel da universidade nunca foi reduzir a desigualdade social. A universidade se sustenta em três pilares: ensino, pesquisa e extensão. Sabemos que especialmente em relação à pesquisa e à extensão o país investe muito pouco e a maioria dos alunos, que passa por ela não se dedicam a eles. No Brasil, a pesquisa e extensão nunca foram devidamente valorizadas, mas é justamente o que confere à universidade a excelência em produção de conhecimento.

Refiro-me à produção de conhecimento avançado, às pesquisas que podem trazer melhorias enormes para a vida das pessoas, que podem encontrar a cura de doenças e revolucionar os nossos conhecimentos em diversas áreas. A universidade não tem o papel de ensinar para o aluno tudo o que ele deveria ter aprendido no ensino médio. Pelo contrário, ela espera que seus alunos possam ir muito além do que ela os ensina.

Criar universidades calcadas nesse tripé, para que sejam reconhecidas como centros de excelência, depende, quase que totalmente, da seleção de alunos, com base na competência ou desempenho. Elas devem realmente ter os melhores alunos em suas cadeiras para que possam cumprir seu objetivo e avançar na produção de conhecimento.

Imagine o quanto estarão preparados os alunos vindos das escolas públicas, que serão avaliados pelo Coeficiente de Rendimento, que é uma conta criada para definir um padrão nacional de notas. Como se sabe, o nível das escolas públicas brasileiras varia muito. Esse tipo de cálculo beneficiará as escolas relapsas, que reduzirão ainda mais o nível de exigência dessas instituições de ensino para que seus alunos tenham alguma chance de ingressar em uma universidade pública. Outro ponto que pesa desfavoravelmente a essa tese é que não existe um currículo nacional, que todas as escolas públicas do Brasil adotem, permitindo, assim, que seus alunos sejam equiparados e adequadamente ranqueados.

O Ministério da Educação divulgou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica no Brasil – IDEB 2011 e os resultados foram alarmantes. A maioria dos Estados não bateu a meta imposta pelo MEC. Verifica-se ainda a imposição de metas distintas para cada Estado, subestimando a capacidade dos alunos das regiões mais pobres do país. O IDEB avalia também os índices de reprovação. Para turbinar o desempenho das escolas, é bem possível que muitos alunos, que não preencham os requisitos mínimos do ciclo em que estão, sejam aprovados e passem para o seguinte. Por conseguinte, será cada vez maior o número de alunos, que concluem o Ensino Médio, como analfabetos funcionais – aqueles que leem, mas não são capazes de interpretar aquilo que está no texto.

Além disso, metade das cotas raciais e sociais deverá ser reservada para alunos com renda per capita de até 1,5 salário mínimo mensal. Eu estudei em uma universidade pública e vi a dificuldade que ela tem para manter os estudantes de baixa renda. As fundações, que têm esse objetivo, são mantidas com a ajuda dos demais alunos. Assim, será criado um ônus adicional para o governo, que terá que subsidiar esses alunos, para que eles possam se dedicar à universidade tem tempo integral, pelo menos por boa parte do curso. Sabemos que isso não vai acontecer e que, precisando trabalhar, esses alunos aumentarão enormemente o índice de evasão das instituições públicas de ensino.

Todos os estudos apresentados para justificar a criação das cotas raciais e sociais comparam o desempenho de um branco de escola particular com um negro de escola pública. Eis a questão. O problema não está na raça e nem nunca esteve. O problema está na discrepância do ensino das escolas públicas e privadas. Existe um verdadeiro fosso entre elas. A adoção das cotas apenas mascara a qualidade do ensino público no Brasil. 

Eu não tenho a menor dúvida de que a criação de cotas dessa maneira rebaixará o ensino público, selecionando alunos sem nenhuma verificação de desempenho, apenas com base naquele Coeficiente de Rendimento, que será obtido em provas diferentes, que utilizam critérios diferentes. E ainda tem gente que quer discutir que se trata de uma medida de justiça social, que sobreleva o princípio da igualdade. Igualdade em que? - devo perguntar.

Estudei Direito, um dos cursos, em que o ingresso em uma universidade pública é dos mais difíceis, e morria de decepção ao perceber que a cada semestre, os alunos que entravam eram mais mal preparados. Depois, já trabalhando em escritório de advocacia, percebi o quanto era difícil selecionar um estagiário, pelo simples fato de que a maioria dos candidatos não sabe sequer escrever. Não digo escrever bem. Só queria que soubessem se expressar e organizar as ideias no papel. Mas nem isso era possível.

Quando entrei em Ciências Contábeis, também em uma universidade federal, percebi que o nível cultural e especialmente a escrita dos alunos eram piores do que dos do Direito, que já era para mim absolutamente precária. Percebi em muitos poucos alunos de Contábeis a curiosidade intrínseca àqueles que leem muito, que são informados e que buscam sempre saber do que está acontecendo no país e no mundo. Poucos se envolveram, ainda que por pouco tempo, em projetos de extensão e não conheci ninguém ligado às pesquisas universitárias.

Essa é a universidade que temos. Melhorá-la depende de investimentos significativos desde a educação básica e os resultados demandam tempo. Só assim há a possibilidade de alterarmos esse cenário e de termos instituições de ensino que selecionam alunos, que estarão em condições iguais para concorrer a uma vaga. Os melhores, apenas eles, ingressarão.

A criação de cotas não resolverá essa questão. Ela trará para dentro das universidades federais alunos cada vez mais mal-preparados, sem condições mínimas para cursar as disciplinas universitárias, conforme as ementas impõem. Sabemos que com o ENEM a seleção dos alunos já piorou bastante. Isso só elevará em muito, como já disse, o índice de evasão e reduzirá o nível do ensino nessas instituições.

Ademais, a redução das vagas para os alunos advindos do ensino privado acirrará ainda mais o nível de exigência dessas escolas, afastando-as mais e mais das escolas públicas. Como, de todo modo, as vagas não serão suficientes, a tendência é que muitos bons alunos e bem preparados migrem para as universidades privadas. Creio que eles, em muitos casos, até mesmo optem por ela, diante do fato de que os alunos da rede pública ingressarão no ensino superior com um nível de aprendizado muito inferior ao deles, fruto daquele relaxamento proporcionado pelo dito Coeficiente de Rendimento. Obviamente o desenvolvimento de todos os alunos, independente da forma de ingresso, será sobremaneira prejudicado.

Para piorar toda essa história, a presidente manteve o ITA e o IME de fora da lei, sob o argumento de que ela só se aplica às instituições de ensino ligadas ao MEC. Ora, o ITA e o IME estão sim ligados ao MEC, por mais que sejam mantidos por outro ministério. O MEC os avalia e confere validade ao diploma, que eles emitem. Sabe-se que essas escolas não utilizam o ENEM para a seleção de seus alunos, o que é feito pelo vestibular à moda antiga, com provas de múltipla escolha e provas discursivas, em que o preparo e a competência prevalecem. Parece-me que a excelência e exigência só, e somente só, dessas instituições se manterá incólume.

Sem uma reforma longa e profunda no ensino público brasileiro, acredito que a lei de cotas seja completamente inexequível. Ela só irá aumentar a diferença do nível do ensino público e privado e fará com que haja uma migração de muitos bons alunos para as universidades privadas. Acho bem pouco provável que a universidade pública continue se apoiando no tripé ensino, pesquisa e extensão, justamente por ter que focar no desenvolvimento de métodos de ensino e turmas de reforço para os alunos oriundos de escolas públicas. Não sobrará tempo e nem disposição para que os professores incentivem e coordenem as pesquisa e extensão universitária. E a produção de conhecimento? Esse se tornará um desafio, uma missão quase que inalcançável para as universidades federais.

Foto: Reprodução.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A sua opinião, positiva ou negativa, sobre as minhas palavras sempre é importante para mim. Obrigada pelo feedback e por me ajudar a aprimorar e pensar sobre o que escrevo!