quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Ela conta que teve um filho com um mendigo

Jacqueline Costa



Confesso que adoro ler as histórias de mulheres que a Marie Claire conta. Há a alguns dias, li a que, para mim, foi a mais forte. Pensei que essa poderia ser a história de inúmeras pessoas, que conheço, que acreditam no poder tranformador do amor.

Claro que o amor, como sentimento nobre, pode mesmo ser o pontapé inicial e servir de motivador para que as pessoas se tornem melhores. Mas existem histórias de vida, em que o amor não é capaz de operar milagres. É preciso muito mais do que isso. E foi o que aconteceu com uma mulher que conta que teve um filho com um mendigo.

Ela estava sentada numa praça, próxima à faculdade e relembrava mentalmente a matéria da prova, que faria naquele dia. Ela tentava se lembrar de cada detalhe dos versos de Shakespeare. Compenetrada, ela sequer percebeu que tinha invadido a área daqueles que moravam naquela praça.

Ela só notou que o tinha feito, quando um mendigo se aproximou dela e citou uma frase. No fim, disse que era de Shakespeare. Ela ficou impressionada com o que acreditava ser uma grande coincidência e se encantou.

Ela tinha acabado de se separar e concordado com a separação também das filhas, que foram morar com o ex-marido no Sul. Ela anuiu com a ida das meninas para longe, porque não tinha condições de criá-las. Era estudante e professora e para manter as duas atividades, se submetia a uma rotina extenuante de aulas atrás de aulas. Em algumas, era aluna e em outras, professora.

Estava atordoada, sensível e extremamente carente longe de suas filhas e com o fim do casamento. Aquela citação solta de uma frase, que sequer pode ser Shakespeare, abriu para ela um mundo de esperanças, que enchia novamente o seu coração.

Após uma brincadeira, eles foram parar num motel. No dia seguinte, ela enlouqueceu e marcou todos os exames possíveis e imagináveis, porque mesmo usando camisinha, ela tinha se entregado a um mendigo! Havia um homem lindo atrás daquela imensa barba, mas ele era um mendigo!

Naquele dia, ela lhe deu o telefone e, posteriormente, ele ligou pedindo que ela o encontrasse de novo naquela praça. Ela relutou, mas foi. Ele lhe disse que ela era a motivação que ele precisava para procurar um emprego fixo, largar os bicos, encontrar uma casa e que queria que ela fosse a mãe dos filhos dele.

Continuaram se encontrando e moraram juntos por algum tempo. No entanto, ele, portador de uma motivação extremamente volátil, herdada da vida na rua, acabava deixando os trabalhos e inclusive a casa dela e voltava para aquela praça. É como se as paredes representassem para ele uma prisão e o amor atenuasse a sua liberdade, o único bem de quem vive na rua.

Lidar com tudo isso não era fácil para ele. Menos ainda para ela, que tentou ajudá-lo de todas as maneiras. Buscou terapia, tratamento e tentava fazer com que ele se sentisse confortável. Mas todo o esforço era em vão.

Diante disso, idas e vindas no relacionamento dos dois se tornaram constantes. Eles terminaram. Algum tempo depois, em uma recaída, ela engravidou. Estava grávida de um mendigo e resolveu que, independente de ele sê-lo, merecia saber que seria pai.

Sua mãe sempre foi contra o relacionamento dos dois. Ela pesquisou todo o histórico dele e descobriu que ele tinha uma extensa ficha criminal por pequenos furtos, mas a filha compreendia a argumentação que ele apresentava: "Você não sabe o que é sentir fome." Realmente ela não podia imaginar como deve ser a vida e nem a história de quem foi parar na rua muito jovem.

Diante do posicionamento da mãe, ela acabou ensinando para ele como entrar em seu quarto pela janela, sem que a mãe o visse. Ele aprendeu e usou isso quando sentiu que ela e o filho, depois de nascido, ameaçavam seu namoro com uma outra moça muito ciumenta. Ele entrou pela janela, quando ela estava tomando banho, e a agrediu enquanto teve forças. Tirou o cadarço do tênis e começou a enforcá-la. Só parou porque ela pediu para que ele pensasse no que seria do filho deles sem ela. Completamente bêbado, ele caiu em um sono profundo ali mesmo. Tudo, na frente do filhos dos dois.

Ela foi à polícia e, posteriormente, na justiça, teve deferido um pedido liminar que o impedia de se aproximar dela. Mas ela, pelo filho, promoveu a reaproximação e leva o menino para jogar bola com o pai nos parques da cidade. O pequeno não sabe que o pai é mendigo e ela diz que não revelará enquanto ele estiver trabalhando. Fez esse acordo com ele.

Concordo que dessa história nasceu um menino, que deve enchê-la de alegria e preencher um pouquinho do buraco, que a ida das filhas para o Sul deixou. Essa é a parte mais bonita dessa história: uma criança, por quem ela viverá, se esforçará e batalhará cada vez mais. Ela ganhou motivação para tudo isso.

Mas não consigo deixar de pensar nas dificuldades intrínsecas ao relacionamento com o pai da criança. Digo isso não só por ela já ter sido agredida por ele, mas por ser extremamente complicado lidar com a informação de que ele é um mendigo. Não é preconceito. É realidade. Já imaginou o que o filho dos dois surportará na escola, se os colegas souberem disso? Crianças são cruéis umas com as outras. Mesmo entre adultos, o que é diferente sempre choca. Ela também já deve ter sido vítima, por diversas vezes, de críticas e comentários das pessoas em seu círculo social.

O amor dela não foi capaz de transformar a realidade dele. É preciso muito mais. É muito difícil entender o que pensa e o que sente quem vive na rua. Ajudá-los, por maior boa vontade que se tenha, é um esforço extenuante, que pode acabar não dando nenhum resultado.

Os moradores de rua têm muita dificuldade de lidar com temas corriqueiros para nós, como voltar para casa todos os dias. Eles entendem que isso significa uma restrição na liberdade, que têm nas ruas. Eles já não sonham, como a maioria dos brasileiros, com a casa própria. E, na maioria das vezes, não conseguem nutrir e fortalecer vínculos. Eles não se prendem a nada. Muitos deles, além de conviverem com essas questões por força do tempo, em que já estão nas praças e calçadas, foram parar lá impulsionados por alguma doença mental, algum transtorno, que já tinham antes de saírem do conforto de seus lares. Essa é a verdade. Basta ter contato com alguém, que já teve a oportunidade de trabalhar com moradores de rua. Eu pude fazê-lo, enquanto estava no Pólos de Cidadania da UFMG, e isso abriu um universo de informações sobre essas pessoas e sobre como veem o mundo, o que para mim, até então, era completamente desconhecido.

Quero dizer que apenas amor não é capaz de sustentar relação nenhuma. É preciso muito mais além disso. Quando escolhemos alguém para dividir a vida, muitas coisas entram em cena. É preciso cultivar o mais profundo respeito e admiração. Apoiar-se mutuamente não significa sustentar-se no outro por tempo indeterminado.

E cada um traz para o relacionamento uma vida e uma história, de que é impossível se dissociar. As pessoas mudam. Eu realmente acredito nisso. Mas o primeiro passo para a mudança é saber como lidar com o passado. Construir um muro entre o que eu sou e o que eu era, para esconder essa parte de mim do outro, não funciona. Mesmo as mais fortes construções são demolidas com o tempo. É preciso aprender a conviver em paz com o passado, por mais tormentoso, que ele seja.

Quando li a história dessa mulher, pensei que eu conheço sim várias pessoas que acreditam no amor sem limites, num mundo em cor-de-rosa e que o amor salva tudo e cura todas as dores. Conheço muita gente que acredita no outro incontestavelmente, que divide um copo com alguém, que mal conhece, e à medida que ele se esvazia, vai contando toda a vida. A pureza de espírito e inocência dessas pessoas as tornam susceptíveis a histórias como essa.

Guardei esse caso no meu Reader por alguns dias, mas resolvi contá-lo aqui justamente para essas pessoas, que acreditam que o amor é capaz de tudo. Infelizmente sozinho ele não dá conta de nada.

Foto: Reprodução. 


Um comentário:

  1. muito real ,tudo o que vc escreveu...quando queremos ajudar,pelo simples fato que devemos ajudar, sem envolver laços,talvez o minimo que possamos fazer é respeitar a escolha que tais pessoas fizeram,voluntária ou involuntáriamente.Somos responsáveis por nossos atos,não importa o grau de instrução ou nivel social,a dignidade existe não importa onde moremos .Até onde será que essa dignidade foi respeitada,especificamente nesse caso,a moeda tem dois lados sempre...

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